O Poema

terça-feira, dezembro 28

I
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
– a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

– Embaixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.

– E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Helder

Capítulo sete… ou apenas, «Silêncio»

sábado, dezembro 11

Dou os meus passos com frequência por Lisboa. Caminho naquela confusão citadina que todos conhecem ou de que ouviram falar. E sucedeu que uma vez - no meio da agitação da gente apressada - pousei os olhos numa frase diferente, pintada na chapa de um autocarro. Era de Almada Negreiros. Dizia ele, ali no amarelo do autocarro, que se alimentava do silêncio...

Veio-me logo à cabeça o contraste, pois estava no ambiente ideal para isso. Nós hoje já não nos alimentamos do silêncio. A verdade é que - muito pelo contrário - fugimos dele. Ligamos a televisão quando estamos sozinhos em casa, mesmo que não olhemos para ela; levamos música quando prevemos uma viagem ou um espaço vazio no dia; vamos descansar do trabalho para uma discoteca. É saudável, sem dúvida, o desejo de companhia, o gosto por estarmos ocupados; a música e, até, o bulício. Somos gente do mundo e este é o nosso lugar, do qual tanto gostamos. Precisamos do trabalho, do ruído, da agitação para nos sentirmos vivos.

Porém, faz também parte da nossa natureza o recolhimento. Somos seres racionais: os nossos gestos deviam ser pensados; os nossos sentimentos e as nossas intenções deviam ser analisados; devíamos avaliar o significado dos acontecimentos; era preciso que forjássemos uma opinião acerca de muitas coisas, novas e velhas. Devíamos construir os nossos princípios a partir de dentro, e não com base em meia dúzia de anúncios publicitários, no que ouvimos no café, na novela ou no noticiário, ou no que lemos num livro que uma grande campanha publicitária colocou na moda.

O silêncio permite-nos ter uma vida por dentro, qualquer coisa que flutua por cima da pressa, da confusão das sensações, das notícias de jornal. Qualquer coisa que - para dizer de outra forma - permanece em sossego, como o fundo do mar, muito longe do reboliço superficial das ondas e do vento.

É pelo silêncio que se entra nesse lugar. Todos devíamos ter um pouco de pastor ou de marinheiro, os clássicos vizinhos dos grandes horizontes e das estrelas.

É dentro de nós que nos podemos conhecer a nós mesmos e conhecer verdadeiramente o que são as coisas e as pessoas e os acontecimentos. Dentro de nós é que havemos de encontrar as sementes do ideal, do sonho nobre, da força para resistir e avançar. E se houver Deus é dentro de nós que O podemos conhecer bem. Por que fugimos, então, de estarmos a sós connosco mesmos? Por trás de uma série de razões superficiais - não totalmente verdadeiras - como a falta de tempo, de gosto, de hábito ou de paciência, existe um único motivo real: temos muito medo da verdade; receamos pensar naquilo que nos pode complicar a vida. [...]

«Um texto de Kafka em imagens de Kuper» - ou será... «Imagens de Kuper com textos de Kafka»?

quarta-feira, dezembro 8


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Carver, o contista


Muitos assistiram ao filme Short Cuts, de Robert Altman. Poucos, porém, conhecem as circunstâncias em que o filme foi concebido. Altman reuniu, numa única história, personagens distribuídos em vários contos pelo contista e poeta norte-americano Raymond Carver (1938-1988). Carver teve uma infância difícil (classe trabalhadora, pai violento), uma juventude conturbada (casou-se aos 19; com 20, já tinha dois filhos), mas nada que se compare com os dez anos em que se entregou ao álcool. O próprio Carver identifica o dia 2 de Junho de 1977 como o mais importante de sua vida: foi a data em que abandonou definitivamente o vício. Viveu os dez últimos anos da sua vida (sóbrio) em Port Angeles, Washington. Em 1988, sucumbiu com cancro no pulmão: ao contrário do álcool, o fumo foi um vício que nunca abandonou.

Raymond Carver consagrou-se como contista. Nessa área, é incontestavelmente um dos maiores nomes do seu século. Se se gostar de Tchekhóv, O. Henry, Hemingway, Sherwood Anderson, John Cheever, pode ler-se Carver, pois ele insere-se nessa tradição: é um fino observador do quotidiano, do prosaico, do comum. Contudo, também como poeta, Carver compôs uma obra de grandes qualidades. Talvez pelo facto dos seus poemas se assemelharem aos seus contos: «Escreva poesia ou prosa, o que pretendo é contar uma história.» (Entrevista concedida a David Koehne, 15/04/78). Carver admirava a instantaneidade do poema e do conto, que proporciona resultado e satisfação imediatos. «Para mim, seria decepcionante trabalhar num romance durante meses e perceber no final que não resultava.» Aqui, partilha da perspectiva de Põe, que preferia o conto aos outros géneros, por que «se lê de um só fôlego».
sobre Carver

Dois Poemas de Carver

The Current
These fish have no eyes
these silver fish that come to me in dreams,
scattering their roe and milt
in the pockets of my brain.

But there's one that comes -
heavy, scarred, silent like the rest,
that simply holds against the current,

closing its dark mouth against
the current, closing and opening
as it holds to the current.


The Scratch
I woke up with a spot of blood
over my eye. A scratch
halfway across my forehead.
But I'm sleeping alone these days.
Why on earth would a man raise his hand
against himself, even in sleep?
It's this and similar questions
I'm trying to answer this morning.
As I study my face in the window.

"Percepção Colectiva da Realidade"

terça-feira, dezembro 7

De tempos a tempos, surgem obras artísticas com o estranho poder de tocar em algo muito profundo e precioso dentro dum grande número de pessoas. Essas obras significativas costumam ter uma característica especial: todas "invocam" uma fonte riquíssima, que é tão antiga quanto inesgotável. Essa fonte chama-se "percepção colectiva da realidade". Trata-se de uma camada subterrânea comum a toda a humanidade (no nosso caso, a humanidade ocidental), feita de mitos e das imagens mais primordiais, e que rege o comportamento dos povos. Por essa razão é que os leitores se identificam profundamente com essas obras. Assim, tornam-se símbolos de uma época.

sexta-feira, dezembro 3



é na palavra escrita que tudo se perpetua e se grava e se registra a minha paixão e a tua. ®

«O Pai Natal traz sempre o que eu peço...»

quarta-feira, dezembro 1

“Olá Pai Natal! Este ano não quero nenhum brinquedo. Só quero que tragas o meu pai de volta. Eu sei que trazes sempre o que te peço. Fico à espera.”
[Pedido de Luís, Personagem]

É véspera de Natal. Um rapaz, não com mais de sete, oito anos de idade, espera ansiosamente pela noite desse dia. Haveria algo que não permitisse que o seu rosto se iluminasse como nos outros anos? O rapaz chama-se Luís. Algum tempo antes, Luís perdera o seu pai num acidente. Quando voltava para casa, tarde como sempre, vindo do trabalho, um camião ceifara a vida do herói de Luís. Em anos passados, o rapaz pedira ao Pai Natal brinquedos caros que seus pais tentavam comprar com o pouco dinheiro de que dispunham. Mas nesse ano..., nesse ano Luís só queria, de novo, abraçar seu pai. Não compreendia como pudera ter sido roubado assim. Semanas antes, escrevera uma carta ao Pai Natal dizendo: “Olá Pai Natal! Este ano não quero nenhum brinquedo. Só quero que tragas o meu pai de volta. Eu sei que trazes sempre o que te peço. Fico à espera.” A mãe de Luís ao ler a carta chorara, trancada em seu quarto, durante muito tempo. Quando saiu, Luís disse-lhe: «Não tenhas medo mãe. O Pai Natal traz sempre o que eu peço.» A mãe acenou-lhe com um sorriso e limpou as lágrimas do rosto.
A consoada chegara. Luís e sua mãe jantavam na cozinha. O pai não chegava. Acabaram de jantar. E o pai, continuava sem chegar. A mãe de Luís deitou-o, deu-lhe um beijo e disse-lhe que o Pai Natal nem sempre pode trazer o que pedimos. Luís, com a generosidade de uma criança, respondeu: «Não te preocupes mãe. O Pai Natal traz sempre o que eu peço.» Nessa noite, como em todas as outras de Natal, Luís não queria dormir. Mas o cansaço apoderou-se dele e adormeceu. No outro dia levantou-se apressado, correu para a mãe que estava na cozinha a preparar o pequeno-almoço e disse: «Feliz Natal!» Depois abraçou-a e sussurrou-lhe ao ouvido: «Vês mãe, eu disse para não te preocupares. O Pai Natal traz sempre o que eu peço». Mais uma lágrima deslizou pelo rosto de sua mãe caindo na mão de Luís... Enquanto isso, alguém batia à porta dizendo: «Feliz Natal! Feliz Natal!».


O Último Cigarro

Deitou-me na cama. Lentamente e à luz do luar, que entrava pelas janelas abertas, Isabella, peça a peça, foi-se despindo, primeiro a blusa, depois a saia e finalmente o resto. Deitou-se a meu lado, de modo a que a sua pele, morena e suave, estivesse de encontro à minha. Tentei beijá-la. Mas ela afastou-me.
[O Narrador-personagem]

Pego no maço de tabaco que está em cima da mesa. Só tem um cigarro, um último cigarro. Ao pegar neste último cartucho de nicotina, tocam à campainha, assustado com barulho deixo cair o maço e o cigarro no chão... Vou atender. Era uma antiga amiga, alguém que já não via há muito tempo, andáramos juntos na faculdade, ela era espanhola, catalã mais precisamente. Sempre fôramos grandes amigos. Teria sido por ventura o meu primeiro romance além fronteiras, e se bem me lembro, o único. Mas apesar de não haver termo de comparação, Isabella não deixava de ser deslumbrante. Convidei-a a entrar. Sentámo-nos no sofá. Perguntei se não queria beber qualquer coisa. Respondeu-me que não. Começámos a conversar. Falámos da vida dela, agora que se mudara para Madrid. Falámos da minha, agora que cada vez mais ia tendo menos trabalho. Enfim... falámos e re-conhecemo-nos.

Isabella ao acender um cigarro despertou-me, ao mesmo tempo, um enorme desejo. Não o desejo de nicotina que tivera momentos antes, outro tipo de desejo. A elegância dos movimentos com que se movia fez-me lembrar recordações que julgara esquecidas. Fora sempre uma mulher extraordinária, de resto, como todas que conheci. No entanto Isabella, era diferente de todas as outras. Talvez por ter sido a primeira. Não sei. Só sei que tudo com ela foi muito estranho. De um dia para o outro, e sem avisar, partiu para Barcelona a sua terra natal, sem nunca escrever ou telefonar a explicar o sucedido. Hoje, por certo, iria saber o porquê de tudo aquilo. Tomei coragem e perguntei-lhe porque me deixara assim. Não respondeu. Na verdade, a partir desse momento não disse mais uma única palavra. Aproximou-se de mim, ainda com o cigarro aceso, mas já quase no fim. Fitou-me com os olhos. Apagou o cigarro e beijou-me. Limitei-me a fechar os olhos e a segui-la. Levou-me para o quarto. Deitou-me na cama. Lentamente e à luz do luar, que entrava pelas janelas abertas, Isabella, peça a peça, foi-se despindo, primeiro a blusa, depois a saia e finalmente o resto. Deitou-se a meu lado, de modo a que a sua pele, morena e suave, estivesse de encontro à minha. Tentei beijá-la. Mas ela afastou-me. Ao invés, começou ela a beijar-me. Primeiro nas mãos, depois nos braços, no pescoço, no rosto e só depois na boca. A pressão dos lábios, a contracção da língua, a permanente troca de desejos, ou então... talvez apenas submissão. Apenas vontade de estar. De não saber para onde ir, nem com quem ir. Apenas vontade de estar e de acreditar que naquele momento eu era feliz... que naquele momento, ao contrário de sempre, eu era vencedor. Isabella continuou a beijar-me sofregamente e eu continuei submetido. Continuei até ela querer, até ela se cansar e adormecer.

Levantei-me no outro dia de manhã. Fui até à sala. Já Isabella se fora embora e como antes, nem um bilhete deixara. Talvez fosse melhor assim. Sem recordações, sem lembranças, sem explicações, apenas com um leve sabor adocicado nos lábios. ...Reparei no meu cigarro no chão. Baixei-me para apanhá-lo. Peguei nele e fumei-o, enquanto pensava no que pode acontecer, desde o momento em que se pega num cigarro, até à altura em que realmente o acendemos e fumamos.